Abandonando as formas arcaicas de fazer negócios, a indústria automobilística depara-se com o extraordinário potencial de transformação para colocar seus produtos a serviço da vida social
Artigo publicado na Revista Página 22 em 08/05/2013, disponível em: http://www.pagina22.com.br/index.php/2013/05/o-automovel-depois-do-carrocentrismo/
É possível recuperar o papel revolucionário que teve o automóvel individual no desenho das cidades, na mobilidade das pessoas e na própria cultura das sociedades contemporâneas? Que os carros particulares tenham perdido este papel já é hoje lugar-comum: ineficientes sob o ângulo energético, vetores do estrangulamento
na circulação, responsáveis por desenhos urbanos desumanizados, é cada vez menos óbvia a associação entre esses veículos e
a liberdade à qual estiveram ligados até meados do século XX.
Optar por essa forma de deslocamento, hoje, envolve um risco crescente de ver-se preso a uma caixa fechada que favorece a emergência do que cada um de nós tem de pior e que Nilton Bonder chama de autoviolência. Além disso, os custos sociais (evidentemente, não pagos) do automóvel individual são exorbitantes: a Technische Universitat, de Dresden, estima-os em nada menos que 373 bilhões de euros anuais, só na União Europeia.
Será possível então que o automóvel, síntese de algumas das mais importantes inovações do século XX, volte a ter um papel fundamental na emergência de cidades sustentáveis e deixe de ser o emblema
da paralisia e do desperdício material e energético a que hoje se vincula?
KPMG e a Roland Berger, duas das mais importantes consultorias globais, mobilizaram suas equipes para ouvir dirigentes da indústria automobilística no mundo todo a respeito desse tema. O resultado é fascinante e mostra uma indústria com um extraordinário potencial de transformação para colocar 
seus produtos a serviço da vida social que, 
ao mesmo tempo, está diante de obstáculos cruciais, que a fazem persistir em formas arcaicas de fazer negócios.
A primeira transformação que já está 
em curso foi batizada pela KPMG de “carro conectado”. As mídias digitais serão decisivas não só no funcionamento da própria máquina, mas, sobretudo, na sua ligação com as cidades, pela possibilidade de indicar onde 
há congestionamentos e quais os melhores horários e trajetos para evitá-los. Na segurança dos veículos e no monitoramento dos próprios motoristas, as tecnologias da informação vão desempenhar papel cada vez mais importante. A eficiência dos motores a combustão interna pode aumentar muito em razão do uso dessas tecnologias. Novos materiais (como fibras de carbono) tornarão os carros mais leves e mais econômicos.
Mas há uma segunda dimensão revolucionária do carro conectado: ela já permite que a economia da partilha ocupe lugar central no uso do automóvel. O estudo da KPMG prevê que em 2026 a partilha será, por exemplo, a opção preferida de um quarto dos brasileiros que usam transporte individual, por meio de sistemas de aluguel baseados em dispositivos móveis, como os que hoje já começam a existir em várias cidades do mundo.
A terceira transformação, mostra a Roland Berger, é que o próprio modelo de negócio das grandes montadoras globais está ultrapassado. Companhias não automobilísticas talvez estejam mais aptas a levar adiante projetos inovadores neste setor. Empresas automobilísticas são mais rígidas e hierarquizadas e mudam com maior dificuldade que as de tecnologia da informação. O atual modelo do negócio automobilístico continua norteado pela oferta: o traço fundamental deste push model consiste em investir cada vez mais em novas fábricas, na expectativa de vender mais e mais carros.
O problema é que, segundo os 
dois estudos, o horizonte de ampliação permanente na produção e venda de automóveis individuais choca-se contra um mercado em estado de saturação. Segundo
a Roland Berger, o mundo tem capacidade para produzir 90 milhões de veículos e a demanda é de apenas 69 milhões. Os dados da KPMG são basicamente os mesmos. Ao mesmo tempo, os dois estudos revelam que, no mundo todo, o carro deixa de ser a grande aspiração de consumo das jovens gerações. E, no entanto, os investimentos para 
ampliar a oferta, sobretudo nos países em desenvolvimento, não cessam de expandir.
Não se trata de preconizar uma sociedade sem carros. Trata-se, sim, de constatar
 que os avanços recentes na conectividade
e na eficiência material e energética dos automóveis só ganharão sentido se estiverem a serviço de cidades organizadas em função das pessoas. E, para isso, a indústria precisa aprender a oferecer serviços de mobilidade, e não cada vez mais carros.
RICARDO ABRAMOVAY É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA FEA E DO IRI/USP E AUTOR DE MUITO ALÉM DA ECONOMIA VERDE. TWITTER: @ABRAMOVAY