13 de abril de 2013

O MAPA DO TESOURO EDUCACIONAL, Cesar Aparecido Nunes



Entrevista com filósofo e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Cesar Aparecido Nunes

Fonte: Revista Gestão Educacional

O filósofo e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Cesar Aparecido Nunes, não tem papas na língua para falar da situação das escolas hoje em dia no Brasil. Para Nunes, que é doutor em Educação pela mesma instituição onde leciona, o Brasil enfrenta hoje 500 anos de comportamento negligente perante a educação, os quais devem ser encarados por meio de melhor financiamento para a área, nova política de formação de professores e também de gestão democrática, voltada ao desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes.
Nunes conversou com a Gestão Educacional em janeiro deste ano, quando esteve em Curitiba (PR) para palestrar para professores dos ensinos básico e superior – a convite da Unicuritiba e do Colégio Novo Ateneu –, sobre os desafios e horizontes possíveis das universidades brasileiras. Confira:
Gestão Educacional: Quais são os principais desafios da escola hoje em dia?
Cesar Aparecido Nunes: Os desafios da educação nesta década encontram ressonância nas exigências da sociedade contemporânea e no passivo que a nossa sociedade tem na produção de uma escola de qualidade e de uma política de formação de professores. O Plano Nacional de Educação (PNE) já tem um indicativo de mandar 10% do PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro para o financiamento da educação. Ou seja, o PNE trabalha uma das dinâmicas de um sistema educacional que é o financiamento da educação. Mas isso tem que ser acompanhado por outras medidas: a formação de professores; a recuperação salarial, que nos últimos 50 anos sofreu um achatamento escorchante; a disposição para o trabalho e para a formação continuada dos professores; a geração de uma qualidade da permanência na escola; qualidade arquitetônica; qualidade institucional; de modo que a escola deixe de ser um depósito de criança, ou então uma versão estereotipada de preparação somente para o trabalho. Ela é um lugar de formação do homem, de preparação da pessoa humana, então a escola tem que ser um lugar humanizado, de acolhimento, preparado para receber a criança e o adolescente. O Brasil é hoje a sexta maior economia do mundo, mas nos índices educacionais, nós nos encontramos lá no 79º, 84º lugares. O passivo educacional e escolar precisa ser urgentemente encaminhado para correção e sem magias, pois nós não corrigiremos isso em uma década. O PNE aponta a prioridade do financiamento, mas eu destaco ainda a prioridade da formação dos professores, da revisão da atual política de formação de professores, da revisão dos mecanismos de qualificação em serviço que viraram um amontoado que eu chamo de “guerra de canudos”. São pequenos cursinhos de fim de semana, como se isso fosse ajudar o professor a compreender a sua dialética e a sua análise. Outra questão é gerar a qualidade de permanência na escola, é promover a gestão democrática da escola. A escola no Brasil se ressente da matriz cultural: um País que foi escravocrata, imperial, positivista e ditatorial e que cujos mecanismos políticos colonizaram também a escola. Então prevalece a visão do diretor capataz, controlador e os professores são vassalos numa concepção de suserania pedagógica, ou são senhores feudais que se fecham cada um em sua sala, sua disciplina. Se a gente perder mais uma década com essa escola ruim, ineficiente e inorgânica, nós teremos perdido uma excelente oportunidade histórica para fazer uma profunda mudança na história desse País.
Gestão Educacional: Como o senhor avalia hoje a organização da escola? Em que aspectos ainda é preciso avançar?
Nunes: A escola recebeu no decorrer do tempo diferentes apelos e demandas que a fizeram ser o que ela é. A escola que os jesuítas criaram quando foram os grandes organizadores do Brasil era uma escola que eu chamo nas minhas palestras de “escola convento”. Ela tinha, a partir do racio estudioro jesuíta, uma organicidade extremamente conservadora no sentido de formar o homem medieval, obediente, centrado. A segunda matriz é a de 1891, da escola positivista, preparadora da ordem vigente, da disciplina do Estado republicano. Em 1930, a terceira escola, que é criada por um decreto de Getúlio Vargas com Francisco Campos e Gustavo Capanema, é uma escola voltada para o mercado de trabalho, para fazer seleção, uma “escola funil” cheia de provas para selecionar aos pouquinhos. Ela vai até 1970, quando Jarbas Passarinho faz a quarta escola, uma escola assistencialista, compensatória e cria uma esquizofrenia para o Brasil: a escola para os pobres, que tem que cuidar da criança para que a mãe trabalhe e despreocupada da eficiência ou da qualidade pedagógica; e a escola de classe média, pois os pobres entram nas escolas públicas, a classe média sai e vai para a escola particular, para outra vez escorchar seus filhos para disputar as pouquíssimas vagas das universidades públicas. Hoje, há 46 milhões de crianças na educação básica. São 6 milhões na escola particular e 40 milhões na escola pública. E esses 6 milhões das escolas particulares ficam com 88% das vagas das universidades públicas. É uma desproporção. Existe a lei de cotas porque a estrutura montada historicamente é ineficiente, injusta e perversa. Agora, precisaremos ter critérios éticos e estéticos para corrigir e superar isso. Precisaremos ter suficiente experiência histórica para gerar uma ética e uma política que criem outra pedagogia, uma pedagogia do acolhimento, de respeito aos direitos sociais e à criança, com uma avaliação que não seja meritocrática e mensurativa, mas que seja propositiva e reflexiva, uma escola que reflita a vida, a cidadania e o desenvolvimento humano e não uma escola colonizada por palavras como “sucesso no mercado”, “falcão” e “leão”. Chega de produzir leão e falcão. É um discurso falso. Nós queremos gente feliz, gente que passe no vestibular da ética, da estética e da felicidade.
Gestão Educacional: Como estimular a gestão democrática e a cultura da participação na escola?
Nunes: A gestão democrática é a criação de um modelo de compreensão da identidade da escola e ao mesmo tempo de compreensão das próprias ciências, uma postura epistemológica. Ninguém conseguirá administrar uma escola que por si só já é plural e diversa se achar que uma pessoa determina tudo. Portanto, só pode tocar adiante uma escola, uma gestão que tenha por natureza a sua diversidade, para então constituir uma cultura circular de decisões coletivas. O que é o gestor democrático? É aquele que junta todas as áreas, ajuda a construir uma crítica dos problemas, ajuda o coletivo a escolher algumas prioridades e depois cobra de cada um o que o coletivo decidiu. O gestor é um coordenador de um processo coletivo. Não podemos continuar com a tradição de que quando as coisas dão certo, o gestor que é bom, e quando dão errado, os professores são ruins. A escola democrática tem que construir uma cultura de participação, de decisões, de prioridades e de corresponsabilização. A escola só irá para frente se possuir um corpo docente que, a partir das leituras que fazem da sua forma de trabalhar na escola e na sociedade, se ajudam nesse processo de humanização, pois a escola é o lugar onde se produz o homem para a vida.
Gestão Educacional: Voltando à questão da formação de professores, que o senhor considera como uma “guerra de canudos”. Como o senhor avalia esses cursos, hoje em dia, no Brasil?
Nunes: A primeira grande decisão deveria ser de uma profunda e eficiente política de formação de professores a médio e longo prazos, tornando os cursos de formação de tempo integral e com bolsa. Para ser professor, eu trabalharia o turno e o contraturno nas pedagogias e licenciaturas, com bolsas para faculdades públicas e particulares, pagas pelo governo, para formar bem o professor. Deixamos a formação dos educadores à mercê de uma rede de instituições, na qual há muita gente séria fazendo formação e há também muita “pilantropia”. A política de formação básica tem que ser melhorada e acompanhada de dispositivos, porque hoje, mais do que nunca, sabemos que o professor nunca está formado. Ele tem uma formação básica, mas é preciso que a cada ano ele atualize os seus conteúdos e a sua didática. Há outro problema terrível: nosso País é um dos poucos do mundo que ainda tem o costume da escola de tempo parcial, que funciona no Brasil como sessão de cinema: sessão da manhã, da tarde e da noite. O jovem inglês, desde a rainha Vitória, que fazia escolas para a burguesia e para os trabalhadores da periferia de Londres, estudava seis, sete horas por dia. O jovem francês, desde Napoleão, tem sete horas de aulas diárias do 0 aos 17 anos. No Brasil, das quatro horas nominais, hoje, segundo uma pesquisa do Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], são apenas duas horas e 42 minutos de aulas reais. Além disso, a formação de professores teria que ser acompanhada de condições materiais de trabalho, de modo que se um professor tiver seis horas numa jornada, com um salário digno, fossem quatro horas de aula e outras duas horas na escola para preparar sua aula, ler um livro, atender um aluno ou um pai, de modo que isso inviabilizasse dois cargos. Não se pode tirar um milagre desse professor em dupla ou tripla jornada. Outro ponto: o Brasil tem uma jornada de 200 dias letivos e ele está entre os países com mais dias letivos. Na Europa, todos os países têm 196 dias letivos, mas 196 dias letivos de 8 horas. O problema não é o tanto de dias letivos, porque isso sobrecarrega o professor. É a jornada de trabalho pedagógico. É uma escola ineficiente, a despeito do heroísmo dos professores e dos gestores, é inorgânica e é impossível que ela consiga cumprir seu papel, que é humanizar e formar. O problema também não é encontrar o referencial teórico da formação de professores. Há uma pluralidade de referenciais, inclusive da pedagogia brasileira, como a escola nova de Anísio Teixeira, a pedagogia do oprimido de Paulo Freire, etc. Não é isso. O problema é que para formar um professor eu tenho que criar condições materiais e objetivas de formação. Quando o Paulo Renato editou os temas transversais, um dos temas era orientação sexual. Nenhum professor tem no curso de Pedagogia um livro de Freud para falar sobre sexualidade infantil. Outro tema transversal é meio ambiente, mas o pedagogo não tem contato com teorias ambientais. Como ele vai falar para uma criança sobre o ethos ambiental? A gente tem que tirar um pouco a ideia de que é só uma boa lei que faz uma reforma educacional; é sim uma lei acompanhada de estruturas de médio e longo prazos.
Gestão Educacional: Existem muitas críticas a respeito de que os cursos de Pedagogia estão muito focados na teoria e deixam de lado a prática da sala de aula. Em sua opinião, deve existir uma reformulação desses cursos?
Nunes: O pedagogo é quem forma a pessoa humana. A Pedagogia é uma ciência que deveria ser plural, multidisciplinar, para formar a pessoa humana. Então o pedagogo deveria ser a menina dos olhos, como é na Alemanha, na Bélgica e na Inglaterra. É o pedagogo que dará as bases iniciais de toda a formação da criança depois dos pais, porque quando a criança sai de casa, a primeira relação dela com a sociedade é a escola. Nesses lugares, valoriza-se o pedagogo economicamente, tendo uma aposentadoria especial. A única profissão que tem aposentadoria especial é o professor, o pedagogo licenciado, porque ele tem que cuidar de uma criança que demanda muito, é ansiosa, cheia de energia. Ou seja, nesses países, a valorização não é meramente salarial, ela é também cultural, porque há toda uma gênese de que a experiência escolar depende da pedagogia. De 1996 para cá, lamentavelmente, a política neoliberal da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) criou bases importantes, mas também não teve, na minha modesta interpretação, a coragem necessária para fazer cursos de formação criteriosa. No Brasil, estuda-se mais para trabalhar com o bezerro do que se estuda para formar a criança. Eu não tenho nada contra o veterinário e o agrônomo ganharem muito bem, mas se a gente quiser um País de escola boa, devemos valorizar o pedagogo salarialmente e culturalmente.
Gestão Educacional: E o que fazer para melhorar os cursos de Pedagogia?
Nunes: Eu acho que o curso de Pedagogia tem que ter dois a três anos de base e depois dois anos de acompanhamento, com uma política de supervisão escolar para que cada dez pedagogos tenham um coordenador que os acompanhe em sala de aula, que peça para que eles façam relatórios. Temos que sair da ideologia do dom e cair mais na ideologia da formação, da intervenção racional para apropriação metodológica de elementos didáticos que compreendam as etapas da criança, os ciclos da vida, de modo que o pedagogo possa intervir nesses ciclos com sensibilidade e originalidade.
Gestão Educacional: E como o senhor avalia a formação continuada?
Nunes: A formação continuada é uma das palavras mais belas que eu já vi. É a ideia de que a formação é para a vida inteira, que é o conceito de Paideia do grego: formar o homem para a vida inteira. Ainda temos aquela concepção colonial de que o dia em que eu me formei, eu estou pronto. Tinha uma professora que todo dia falava para mim: “professor Cesar, o senhor, com a prática, vai ficar como eu”. Um dia eu lhe respondi: “quantos anos você tem de prática?”, ela me disse: “tenho 27 anos de prática”, e eu falei: “professora, para mim, você tem um ano de prática e 26 de repetição”, porque a prática não é a contabilidade dos dias que eu fico na escola. A prática é a capacidade reflexa de estudar as contradições da minha atuação na escola, pois em cada ano meus alunos me desafiam de uma maneira diferente. Precisamos nos atualizar teoricamente para, inclusive, tencionar a prática todo ano. A formação continuada é a única possibilidade para que tenhamos educadores emancipatórios e criativos, porque é uma falsidade pensar que nós, por uma formação inicial, daremos conta das demandas de crianças e adolescentes. A formação continuada é a parte orgânica da atualização das práticas dos educadores. Eu sonho com um curso de Pedagogia que, ele próprio, tenha um mecanismo de formação continuada, que ele próprio abra para os seus formandos essa ideia. Sócrates falou “tudo que sei é que nada sei”, o que a filósofa alemã Utta Ranke-Heinemann traduziu como “quanto mais eu conheço, mais eu vejo que há mais para conhecer”. Esse é o princípio da formação continuada. Ser professor é estar todo o tempo aprendendo. 

Todos pela educação

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