29 de outubro de 2012

Tema em discussão: Recolhimento compulsório de viciados em crack


 
Edição de hoje , 29/10/2012. do jornal O Globo traz duas opiniões opostas sobre a nova política da prefeitura do Rio de Janeiro de internação compulsória de adultos viciados em crack.

Ações emergenciais
Opinião do jornal O Globo.

A imagem de um viciado crônico em crack é a de um ser humano que caminha inexoravelmente para a total degradação, física e moral. No estágio em que já estão totalmente dominados pelos efeitos da droga, e dela não conseguem mais se livrar em razão do comprometimento químico do organismo, os usuários demonstram comportamento muito fora do normal, como apatia profunda, perda de interesse por quase tudo o que não seja a própria alimentação do vício ou, no extremo oposto, reações violentas.

Neste último caso, o Rio foi palco, dias atrás, de preocupante exemplo de como a droga é capaz de levar a reações psicóticas: o incêndio que um grupo de viciados provocou numa delegacia de Irajá, quinta-feira. A isso se junta o crescente registro de crimes (agressões, assaltos e até homicídios) praticados por pessoas sob efeito do crack.

Seja em defesa da integridade do usuário, que não consegue discernir os riscos do caminho sem volta para a qual dirige sua vida, ou para preservar a sociedade dos espasmos de violência de viciados que perdem o controle de seus atos, o Estado tem o dever de intervir neste ciclo com os instrumentos institucionais de que dispõe.

O crack espalha-se pelo País com a rapidez e o poder de devastação sanitária de uma epidemia. No ano passado, uma pesquisa da Confederação Nacional de Municípios informava que, em 63,7% das cidades, a droga já causava problemas extras para os serviços públicos de saúde. Em mais da metade, era responsável por graves problemas na segurança. Também em 2011, reportagem do Globo mostrava que a disseminação do crack tem uma relação direta com o crescimento do número de homicídios, principalmente de jovens de 15 a 24 anos, faixa etária na qual se concentra a maior parte dos usuários crônicos.

O Rio não foge a este quadro. Ao contrário. Mapeamento parcial da prefeitura indica que a cidade tem pelo menos 11 cracolândias, e os acontecimentos dos últimos dias indicam que o flagelo que leva crianças, adolescentes e adultos à degradação está em curva ascendente. Este preocupante perfil move o poder público na proposta de atacar o problema com um tratamento radical - no caso, o recolhimento compulsório de viciados na droga. A medida não é pauta para abstratas discussões ideológicas, mas imposição da realidade. Vidas humanas estão sendo desperdiçadas, pessoas que já não têm livre arbítrio em relação à saúde do próprio corpo, ou à sanidade de seus atos, estão numa rota que, quando não leva à morte, conduz à incapacidade física e mental.

O recolhimento compulsório é uma ação emergencial, mas o combate ao crack não se esgota nessa medida. Deve-se cobrar das autoridades, nos três níveis de governo, a adoção de uma política integrada e multidisciplinar capaz de fazer frente a essa tragédia. Caso contrário, a luta contra a disseminação da droga cairá em movimentos de gato e rato, como se tem visto até agora, e não só no Rio.

Prática higienista

Opinião de Vivian de Almeida Fraga, presidente do Conselho Regional de Psicologia/RJ; Charles Toniolo de Souza, presidente do Conselho Regional de Serviço Social/RJ; e Alice de Marchi de Souza, membro da Frente Estadual Drogas e Direitos Humanos.

A internação compulsória de adultos - bem como a de crianças e adolescentes - em situação de rua em suposto uso de drogas no Rio é um retrocesso em diversos campos. A complexidade do tema tem feito com que vários atores da sociedade civil e do poder público se posicionem contra este tipo de ação - sem, no entanto, obter qualquer acolhimento da administração municipal.

Estas operações reeditam uma velha prática higienista: o recolhimento compulsório da população em situação de rua - desta vez vinculada ao grande vilão do momento, o crack.

Com a promulgação da Lei 10.216/2001, que estabelece um novo paradigma de cuidado em oposição à lógica manicomial, fica instituído que "a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes" (artigo 4º), sendo de responsabilidade do município a implementação de tais serviços.

As operações em questão, além de tratarem essa população de forma massificada e violenta, consomem recursos públicos que deveriam ser utilizados para financiar os serviços abertos que promovam a autonomia, a cidadania e a inclusão social previstos em lei.

Assumir a internação compulsória como política pública é reconhecer que o município não investe em serviços especializados. Como pensar em tratamento se não há uma rede? No Rio, para cada 1,2 milhão de habitantes existe apenas um Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPSad). Em Recife, essa proporção cai para 250 mil habitantes.

Os recursos públicos deveriam ser aplicados na abertura de mais CAPS (AD, infantil e 24 horas) e serviços como urgência, emergência e atenção hospitalar; residências terapêuticas; centros de convivência; equipes da Estratégia de Saúde da Família; consultórios de rua e Núcleo de Apoio à Saúde da Família. É preciso ampliar a rede de serviços da assistência social, como os Creas (Centros de Referência Especializados da Assistência Social) e o Centro POP. Investir em habitação, geração de emprego e renda, esporte e lazer para garantir a prevenção.

Não se trata de inventar a roda: existem alternativas concretas para o atendimento humanizado e pautado na garantia de direitos da população. O que ainda falta é a abertura de espaços de interlocução do poder público com os diferentes atores sociais - o que se espera de um estado democrático de direito.

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